Decidi passar a limpo meus cadernos poéticos da infância. Neles escrevia de tudo: poesias, músicas, era uma espécie de diário - sem data fixa - das coisas que me interessavam.
Nas lembranças achei muitas coisas bobas, mas algumas que me fizeram rir – e muito.
Segue abaixo uma passagem (duas na verdade) de como o meu escritor favorito se tornou O favorito.
A leitura vale a pena!
Hoje vou ler igual gente grande! (escrito dia 5 de julho de 1998)
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Meu velho irmão não para de estudar. Não que ele seja velho, mas de todos é o que nasceu primeiro. Agora ele comprou um livro que seu professor disse ser bom. Chama "Ensaio Sobre a Cegueira", peguei emprestado para ver qual é a história. Se eu gostar escrevo mais.
* É claro que muitos detalhes da leitura com certeza passaram à época. A pureza dos meus onze anos não compreendeu muito do que viria a ser meu livro de cabeceira. Mas, definitivamente, aquela leitura me instigou.
07/09/98
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Aquele livro (Ensaio Sobre a Cegueira) tem alguma coisa muito boa sim! E tão difícil... Mas já li! Minhas partes favoritas são:
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"A gente, disse no tom de quem sorri de si próprio, habitua-se tanto a ter olhos, que ainda julga que os pode usar quando já não lhe servem de nada"
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"Ora, é dos livros, mas muito mais da experiência vivida, que quem madruga por gosto ou quem por necessidade teve de madrugar, tolera mal que outros, na sua presença, continuem a dormir à perna solta, e com dobrada razão no caso de que estamos falando, porque há. uma grande diferença entre um cego que esteja a dormir e um cego a quem não serviu de nada ter aberto os olhos".
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"O ponteiro de sintonização continuava a extrair ruídos da pequena caixa, depois fixou-se, era uma canção, uma canção sem importância, mas os cegos foram-se aproximando, devagar, não se empurraram, paravam logo que sentiam uma presença a sua frente e ali se deixavam ficar, a ouvir, com os olhos muito abertos na direcção da voz que cantava, alguns choravam, como provavelmente só os cegos podem chorar, as lágrimas correndo simplesmente como de uma fonte".
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Descobri também que pode escrever palavrão nos livros! Tem uma parte que ele escreve merda! Achei bem engraçado.
Dezembro de 1998:
Estou muito feliz, hoje começo a ler "Memorial do Convento", do mesmo escritor do livro que eu gostei muito.
Bom... o resto não preciso escrever, não é?
Aconselho, intimo e desejo que você leia não apenas os dois primeiros que fizeram parte da minha vida, mas a obra inteira desse escritor magnífico, que tocou até a alma pueril de um serzinho aos onze anos de idade...
José Saramago